terça-feira, 2 de março de 2010

Filhos Brilhantes Alunos Fascinantes - Augusto Cury


PARTE A


Capítulo 1


Bons filhos conhecem o prefácio
da história dos seus pais, filhos
brilhantes conhecem os capítulos
mais importantes das suas vidas.




Uma escola em crise

Havia uma certa escola apelidada de Escola dos Pesadelos. Trabalhar e estudar nela era um verdadeiro martírio. Os alunos viviam agitados, não se respeitavam, freqüentemente se agrediam. No semestre anterior, um aluno havia ferido outro, deixando-o paraplégico com uma bala na coluna.
Muitos professores estavam ansiosos, deprimidos, amedrontados devido ao clima da escola. Os alunos viviam alienados, ansiosos e irritados. Para muitos, o último lugar em que queriam estar era dentro da sala de aula. Raramente alguém tinha interesse em aprender. Estudar, assimilar o conhecimento, fazer provas era uma chatice insuportável.
Os conflitos eram tão graves que diariamente se chamava o policiamento. A escola deixou de ser um canteiro de paz e se converteu num canteiro de medo. Nada parecia mudar o caos dessa escola.
Certa vez, um professor de física, que deu uma nota baixa para três alunos, foi ameaçado de morte. Temendo pela sua vida, abandonou a escola. Foi o décimo professor a desistir de trabalhar na escola no último ano.
Um novo professor de física foi contratado, Romanov. Tinha apenas l,55 m de altura, era franzino, magro e aparentemente tímido. Ao vê-lo, alguns alunos, com um sorriso sarcástico, pensaram: "Coitado! Esse não dura uma semana. Se o antigo professor, que tinha 1,90 m e era musculoso, não suportou a ameaça, esse será facilmente dominado", imaginavam.
No primeiro dia de Romanov um grave problema ocorreu. Um aluno agressivo e autoritário, apelidado de Gigante, colocou a lixeira da sala ao lado da porta para o professor tropeçar. Romanov entrou eufórico, estava animado em se apresentar, nem olhou para o chão. O pequeno professor jamais sofreu uma queda tão feia. Quase quebrou a perna.
A classe não conteve o riso, embora alguns tivessem pena do mestre. Romanov levantou-se serenamente, tirou o pó da calça e momentos depois fitou a face de toda a turma. Não disse palavra alguma, mergulhou num profundo silêncio. No começo, ninguém se aquietou. Os minutos se passaram e a platéia começou a ficar incomodada.
O silêncio do novo professor penetrou pouco a pouco na mente dos alunos e os inquietou. Nunca viram uma reação como essa. Esperavam broncas e sermões, mas foram inundados por um gritante e perturbador silêncio. Quinze minutos depois, todos estavam calados.



A grande lição

Acalmada a platéia, Romanov a chocou, soltou uns gritos incompreensíveis, que assustaram a todos os alunos. Após o choque, ele começou a fazer movimentos com as mãos, como se fosse um catedrático em artes marciais. Os olhos dos alunos não conseguiam acompanhar seus movimentos.
De repente, o professor virou uma cambalhota no ar. Os alunos, atônitos, não acreditaram no que viram, o espaço parecia tão curto para um movimento tão fantástico. Parecia um filme.
Finalmente entenderam que estavam diante de um grande mestre do karatê, um magnífico faixa preta. Romanov já ganhara inúmeras medalhas em muitas competições. Treinou os alunos a lutar e se dominar, era valente, corajoso e admirado. Mas deixou tudo para ser um professor.
E, como professor, queria treinar seus alunos a pensar sobre dois mundos, o mundo em que estão (o físico) e o mundo de que são (o psíquico). Após deixar a platéia embasbacada com sua habilidade, bradou com voz poderosa:
— Quem colocou o cesto do lixo para que eu tropeçasse?
Gigante se encolheu.  Começou a tremer os lábios. Sua insegurança o denunciou. Aproximando-se dele, olhou firmemente nos seus olhos e abalou-o:
— O poder de um ser humano não está na sua musculatura, mas na sua inteligência. Os fracos usam a força, os fortes usam a sabedoria. Que tipo de força você tem usado? — perguntou o mestre.
Gigante não respondeu. O professor perguntou qual era o seu nome. O jovem falou rapidamente. Perguntou se ele tinha apelido. Ao saber seu apelido, o professor meneou a cabeça e fez uma pergunta para a classe:
— Quem agride os outros é fraco ou forte?
Romanov ensinava através da arte da pergunta. A arte da pergunta abria as janelas da mente dos alunos e os fazia pensar sobre vários ângulos um mesmo problema, desenvolvendo áreas nobres da inteligência. Queria que eles pensassem de maneira ampla e aberta.
Contrariamente ao que sempre acreditaram, a turma respondeu:
— Quem agride é fraco!
— Então aqueles que promovem guerras e atos violentos são fracos. Quem usa a agressividade e não a sua inteligência é frágil. — Em seguida, voltou para a classe e acrescentou: — Todavia, para mim o Gigante não é fraco, mas um grande ser humano. Tenho certeza de que ele tem um excelente potencial intelectual. Ele precisa somente descobrir esse potencial.
A platéia ficou paralisada com suas palavras. Atônitos, os estudantes se perguntavam: "Como ele conseguiu elogiar um aluno do qual todos os professores procuram manter distância?" E, dirigindo-se ao Gigante, abriu-lhe a mente. Disse-lhe:
— Você me machucou, mas para mim você não é um problema nem um inimigo. Saiba que você não é mais um número na classe, mas um ser humano especial. Se você me permitir, gostaria de conhecê-lo melhor e ter a oportunidade de ser seu amigo. — Em seguida, estendeu-lhe a mão.
O pequeno professor tornou-se grande na personalidade do aluno violento, que não amava nem respeitava ninguém. A imagem de Romanov foi arquivada nos solos do inconsciente de Gigante de maneira privilegiada.
A partir daí, Gigante, que detestava física, passou a curti-la. Quem ama seu mestre, ama a matéria que ele ensina. Quem não ama seu professor, dificilmente amará suas idéias. Romanov acreditava nessa tese.
Vários alunos também se comoveram com o episódio. Romanov não tinha apenas conhecimento lógico sobre física, ele conhecia o território da emoção, por isso era um professor fascinante, sabia resolver conflitos em sala de aula. Rompeu o ciclo da agressividade, começou a surpreender e tratar com gentileza seus agressores.
A Escola dos Pesadelos começou a receber os raios solares dos sonhos, o sonho da sabedoria, da generosidade, da fé na vida. A dor se transformou num golpe de amor no pequeno e infinito mundo de uma sala de aula. Para Romanov, a sala de aula é um pequeno mundo, porque o espaço físico, embora pequeno, é infinito, pois contém seres humanos complexos, indecifráveis, verdadeiros universos a se explorar.
As atitudes incomuns de Romanov se espalharam por toda a escola. No episódio de Gigante, ninguém acreditava que ele se calara e ficara emocionado em sala de aula. Já teve passagem pela polícia, era líder de um grupo que envolvia dezenas de alunos de outras classes e de outras escolas.
No começo, os demais professores começaram a estranhar o comportamento de Romanov. Uns acharam que ele delirava, outros pensavam que queria ser uma estrela na escola e ainda outros, que era um herói que estava assinando sua sentença de "morte",
Cinco vezes murcharam o pneu do seu carro, três vezes riscaram toda a lataria. Recebia toda semana telefonemas anônimos de alunos ameaçando-o. Quase diariamente escreviam frases agressivas ou zombando com a cara dele nos muros da escola. Alguns alunos que não o conheciam, o detestavam gratuitamente. No território da agressividade não se aceitava a sensibilidade.
O tempo passava e, apesar de todos os acidentes da jornada, Romanov perseverava e continuava incendiando a escola com sua mente afiada. Perturbados, os professores e alunos se perguntavam: de onde veio esse professor com um sotaque tão carregado? Como ele consegue reagir com inteligência em situações que só é possível entrar em desespero? Por que quanto mais ameaçado mais provoca o raciocínio dos alunos? Por que fala de sonhos? Não é isso careta, ultrapassado? Por que insiste em fazer uma ponte entre a sua matéria e a vida real?



O professor da escola de Beslan

Mais tarde, ficou-se sabendo quem era Romanov. O diretor começou a comentar a sua verdadeira identidade. Ele foi chamado especialmente para tentar aliviar os graves problemas da Escola dos Pesadelos. Romanov foi professor da escola de Beslan, na região do Cáucaso, na Rússia. Essa escola sofreu algo inimaginável, um ataque terrorista em setembro de 2004.
Professores e alunos foram feitos reféns. Penetraram no mais profundo vale do medo. Foram feridos e ameaçados. Passaram fome e sede, não era permitido sequer fazer suas necessidades, como urinar, em locais apropriados. Por fim, a tragédia aconteceu.
Com a invasão dos policiais na escola, tentando socorrer os alunos, deflagrou-se a violência dos terroristas. Centenas de crianças e adolescentes morreram. Jovens que brincavam, corriam, sorriam, enfim, estavam iniciando sua história existencial cheia de emoções, foram silenciados, fecharam seus olhos. A humanidade parou. Depois dessa tragédia, as escolas no mundo todo nunca mais foram as mesmas.
Romanov foi ferido nesse ato terrorista. Recebeu uma bala na perna direita, mas se curou. Porém uma ferida jamais se fechou: as imagens de jovens inocentes sendo mutilados sem compaixão pelos adultos. Uma espécie que não cuida dos seus pequenos não tem como sobreviver.
Um dos alunos, Pavlov, o mais ansioso e irritado da sua classe, ao desfalecer em seus braços, disse as últimas palavras: "Obrigado, professor, por acreditar em mim. Obrigado por me fazer enxergar que a vida é um espetáculo". Nesse momento, seu coração deixou de pulsar, sua respiração cessou. Romanov soluçava inconformado. Aos gritos, dizia: "O que fizemos com nossas crianças!".
Por ser muito agitado e alienado, o jovem Pavlov perturbava freqüentemente sua classe. Apesar do tumulto que causava, o professor Romanov sempre pegava em seus ombros e dizia-lhe: "Aposto que você será um grande ser humano. Você ainda vai brilhar". O elogio penetrava nos quartos mais escuros da sua personalidade.
De fato brilhou. Sua última frase era o sinal de alguém que abriu as janelas da sua mente e refletia sobre o teatro da vida. Para milhões de pessoas, a vida vale tão pouco. Para uns, uma conta bancária, para outros, uma ideologia política, mas para o jovem Pavlov e Romanov, a vida era um show fascinante que jamais deveria ser interrompido, a não ser por fatores inevitáveis.
Deprimido, Romanov não conseguia aceitar o drama da escola de Beslan. As cenas de terroristas sentados sobre bombas, gritando com as crianças e professores dizendo que iriam matá-los se eles não se aquietassem eram inesquecíveis. Amedrontados, faziam suas necessidades na frente uns dos outros.
Querendo separar a região da Chechênia do resto da Rússia, usaram crianças como objeto de barganha com o governo. Foram colocadas no epicentro de um conflito que não construíram e nem sabiam por que existia. Romanov não conseguia apagar da sua mente as imagens de cada um dos seus alunos que faleceram.
Queria abandonar a sala de aula, esquecer tudo o que ocorreu e se dedicar apenas às artes marciais, mas não conseguia. Queria encontrar um sentido para a sua vida, mas, atormentado, não conseguia. Queria encontrar um lugar em qualquer parte do mundo onde os jovens fossem felizes, livres e autores da sua própria história. Pensava em se mudar para esse lugar, mas quanto mais lia sobre o comportamento da juventude, mais se decepcionava.
Aos poucos, entendeu que o sistema social dos adultos cometeu crimes imperdoáveis contra os jovens. Entendeu que há um terrorismo psicótico que mata a vida, mas há também um terrorismo silencioso em todas as sociedades modernas, que não destrói o corpo, mas esmaga o prazer de viver, a criatividade, a inteligência crítica e a identidade das pessoas.
A juventude era bombardeada diariamente com propagandas para consumir produtos e não idéias. Esse bombardeamento perturbava milhões de pais e professores no mundo, em especial Romanov. O sistema "gritava", nos comerciais de TV e demais setores da mídia, que os jovens deviam consumir celulares, tênis, computadores, iPods, mas não falava, nem timidamente, que eles deviam expandir a consciência crítica e a arte de pensar para ser livres dentro de si mesmos.
O veneno do consumismo criado pelos adultos era tão poderoso que os jovens não o contestavam. Ao contrário, queriam bebê-lo em doses cada vez maiores. Querendo apenas o prazer imediato, os jovens sufocavam seus projetos de vida. Não sabiam debater idéias, filosofar a vida, pensar nos mistérios da existência. Não refletiam que a vida é belíssima, mas brevíssima. Por ser tão breve, cada momento deveria ser vivido de maneira solene e sábia. "Mas a sabedoria estava morrendo", detectava Romanov.
Na escola de Beslan, os alunos foram reféns de terroristas violentos, mas nas sociedades modernas os jovens eram reféns de um sistema agressivo e controlador que destruía a capacidade de escolha e os valores da vida. Nunca houve tantos jovens aprisionados no território da sua emoção.


A sala de aula, um campo de batalha

Certa noite, ao acordar ofegante de madrugada, uma luz acendeu-se no interior de Romanov. Sentia que não podia fugir da sala de aula. Não podia enterrar seu passado. Teria de transformar seu trauma em adubo para cultivar as flores mais belas do sentido da vida e da inteligência.
Resolveu que o drama da escola de Beslan não seria apagado. Por amor à juventude e em memória de Pavlov e de todos os seus outros queridos alunos, resolveu que voltaria para a sala de aula e a transformaria no maior campo de batalha em favor da vida. Um campo de batalha que não formaria soldados para uma guerra, mas formaria pensadores apaixonados pela existência e pela humanidade. Um campo de batalha em que os alunos não tivessem apenas conhecimento de física, matemática, química, mas no qual aprendessem a lutar pelos seus direitos, contra a discriminação, consumismo, desigualdades sociais, violência e toda forma de terrorismo.
Romanov deixou as competições das artes marciais e se dedicou à física e principalmente em estudar e compreender o desenvolvimento da inteligência. Brilhou tanto que começou a ficar conhecido internacionalmente. Onde havia uma escola com graves problemas, ele era chamado para provocar uma revolução na relação entre professores e alunos.
Dessa maneira é que foi parar na Escola dos Pesadelos. Por conhecer alguns fenômenos da construção da inteligência, ele sempre fazia duas solicitações à direção.
Primeiro, pedia que os alunos se sentassem em semicírculo. Enfileirar os alunos gerava timidez, inibição do raciocínio, bloqueio do debate de idéias. Para Romanov, enfileirar poderia contribuir para a disciplina militar, mas não para formar pensadores. O instigante professor não queria que seus alunos fossem uma platéia de espectadores passivos. A sala de aula deveria ser um teatro no qual professores e alunos seriam atores na produção de conhecimento.
Segundo, pedia que houvesse música ambiente durante a exposição das aulas, de preferência clássica, para que as notas musicais cruzassem com as informações em sala e assim melhorasse a concentração e a assimilação do conhecimento. No começo, os alunos queriam músicas agitadas como o rock, mas aos poucos educavam seus ouvidos e também aprendiam a apreciar a música clássica.
Terceiro, estimulava a arte da crítica e da dúvida contando histórias pelo menos a cada quinze dias em cada classe. A maioria das histórias era rápida, algumas mais prolongadas foram aqui descritas.
Três meses após a aplicação dessas técnicas defendidas por Romanov, os resultados eram visíveis. Ocorria uma diminuição substancial da ansiedade e a melhoria da concentração. Os alunos começavam a ter prazer de ir à escola.
Em toda escola em que o professor russo iniciava suas atividades, ele se comportava como um professor comum. Aos poucos, ia contagiando o ambiente. Não gostava de ser estrela, queria fazer os outros brilhar.


Uma escola precisando da sabedoria

Romanov não via sentido em bombardear os alunos com informações sem aplicar essas informações para ensiná-los a viver. Dar informações em excesso estressava os alunos, fazia da memória um depósito pouco útil que não estimulava a inteligência. Por isso, ele sempre dava lições usando a matéria que ensinava.
Para Romanov, educar era provocar a inteligência. Certa vez, numa determinada classe, provocou o raciocínio dos alunos com estas palavras:
— Não devemos enxergar apenas com os olhos da face, que só captam a luz exterior, as ondas eletromagnéticas. Precisamos também enxergar com os olhos do coração, que captam os pensamentos e as emoções das pessoas. Vocês conseguem descobrir as riquezas soterradas nas pessoas que os decepcionam? — perguntou Romanov, estimulando os alunos a fazer um debate de idéias.
é duro conviver com pessoas complicadas — disse rapidamente Elisabete, uma das alunas da classe.
— Às vezes, nós é que somos complicados — brincou Romanov.
A turma sorriu. Em seguida, o professor aproveitou o momento e pediu que eles fizessem um exercício intelectual.
— Pense, nesse exato momento, durante apenas um minuto, em alguém que o chateou, o ofendeu, o rejeitou ou o traiu. — E, para espanto dos seus alunos, acrescentou: — Procure enxergar nele algumas qualidades que você jamais percebeu.
Alguns alunos expressaram baixinho: "Meus inimigos só têm defeitos". Era raríssimo ver os alunos dessa escola refletir. Mas o ilustre professor os estimulou a sair do mundo físico e mergulhar no mundo psíquico. Por incrível que pareça, eles ficaram pensativos. Passado um minuto, o professor perguntou:
— Alguém enxergou algo além da luz exterior? Alguém viu uma qualidade em quem só via erros e falhas? — perguntou o professor.
Quase todos levantaram as mãos. Viram, pela primeira vez, o invisível, o essencial.
— Alguém quer falar alguma coisa? — completou.
A platéia ficou emudecida. Entretanto, quando um aluno começou a falar, os outros se desinibiram.
Um aluno disse que passou a odiar um amigo porque ele roubou a sua namorada, mas sabia que ele tinha pontos bons na sua personalidade, embora nunca tenha aceitado suas desculpas. Outro, disse que detestava um professor que o chamou de estúpido, mas reconheceu que agiu com desrespeito com esse professor e descobriu que ele tinha algumas qualidades que não via.
Marcos se adiantou, respirou fundo e teve a coragem de falar das mágoas que tinha do seu pai.
— Eu não suporto meu pai. Só sabe falar gritando comigo. Pega no meu pé, vive tentando me controlar. Ele é engenheiro de estradas. Viaja muito e, quando chega em casa, não posso fazer nada que ele já me critica. Diz que eu atrapalho a vida dele...
Nesse momento, Marcos suspirou. Em seguida, continuou:
— Já pensei em sumir de casa. Eu e meu pai não podemos estar no mesmo ambiente sem discutir. Todavia, apesar das nossas diferenças, enxerguei nesse um minuto algo que nunca havia visto. Não deve ser fácil a profissão dele. Ele luta para que possamos sobreviver. Também percebi que às vezes ele se esforça em ser legal. Tenta aproximar-se, fazer programa junto comigo, mas eu sempre me afasto dele.
A classe percebeu que o professor ficou comovido com a história de Marcos, parecia viajar no tempo. Romanov perdeu seu pai com dezessete anos de idade. Teve de lutar muito para sobreviver, inclusive para superar a saudade. Queria ter tido tempo para descobri-lo, conhecê-lo e amá-lo mais. Enxugando as lágrimas com os dedos, ele olhou fixamente para o jovem Marcos e disse-lhe:
— Você tem o seu pai vivo. Tem o privilégio de se aproximar dele, conhecê-lo interiormente e corrigir as rotas do seu relacionamento. Eu não posso mais, pois perdi o meu pai tão cedo. — Em seguida, fez uma pergunta que atingiu muitos alunos: — Quem tem mágoa de seus pais ou suas mães levante as mãos? Sejam sinceros.
Para sua surpresa, mais da metade da classe levantou as mãos. Diante disso, fez mais uma pergunta que perturbou novamente seus alunos.
— Quem conhece profundamente seus pais e mães, suas angústias, seus sonhos, suas aventuras, seus dias mais alegres e mais tristes? — perguntou Romanov com profunda sensibilidade.
Jamais alguém lhes havia feito tal pergunta. As palavras de Romanov ecoaram na alma dos seus alunos. Ninguém se arriscou a levantar as mãos. Era uma situação triste. A grande maioria dos jovens não conhecia seus pais.
Parecia absurdo, mas essa era uma realidade mundial. Respiravam o mesmo ar e comiam dos mesmos alimentos, mas eram estranhos uns para os outros. Eles reclamavam das suas mães, criticavam seus pais, apontavam seus erros, mas não os conheciam.
Então, para ilustrar o assunto, o mestre, como sempre gostava de fazer, contou-lhes uma comovente história de um filho que, por anos a fio, tinha vergonha das cicatrizes do seu pai.


Um herói na cadeira de rodas

Havia um homem de 38 anos, que tinha enormes cicatrizes no rosto. Seu nome era Guilherme. Suas cicatrizes eram tão salientes que lhe deformavam a face. Em qualquer ambiente social em que ele entrava as pessoas ficavam chocadas com a sua aparência. Além disso, era paraplégico, andava numa cadeira de rodas. Guilherme era pai de Rodolfo, um garoto de 14 anos.
O jovem Rodolfo morria de vergonha que as pessoas vissem o rosto mutilado do seu pai. O menino cresceu tentando escondê-lo. Não convidava seus amigos para freqüentar sua casa, não o chamava para participar das reuniões e festividades da escola. O pai percebia as reações do seu filho e se calava.
Certa vez, Rodolfo contraiu uma forte gripe e faltou à aula. Nesse dia, um professor pediu para os alunos fazerem um trabalho em grupo que deveria ser entregue no dia posterior. Era uma luta contra o relógio. O grupo de Rodolfo, preocupado com a urgência do trabalho, apareceu de supetão na casa dele para avisá-lo. A mãe os recebeu e os introduziu na sala. Em seguida, foi chamar Rodolfo, que estava em seu quarto.
De repente, apareceu o senhor Guilherme numa cadeira de rodas. Ao olhar a sua face, os alunos receberam um choque. Em seguida, apareceu Rodolfo, que ficou abalado ao ver seus colegas com os olhos vidrados na face de seu pai.
— Não se preocupem, eu sei que sou bonitão! — disse o senhor Guilherme, bem-humorado, tentando dissipar o espanto do seu filho e de seus colegas.
Eles sorriram, mas Rodolfo não relaxou. Queria fugir da sala, mas não era possível, o drama era inevitável. Seus colegas perceberam a doçura de um homem mutilado pela vida. Rodolfo estava tão acostumado a ver os defeitos exteriores do seu pai que nunca o enxergara como uma pessoa sociável e cativante. Seus preconceitos impediam-no de ver a beleza escondida atrás das cicatrizes do seu pai.
Enquanto faziam o trabalho, os alunos tiveram algumas dúvidas. Resolveram pedir ajuda para o senhor Guilherme, que prontamente os atendeu e os deixou admirados com sua fantástica cultura. Ele lia mais de um livro por semana. Após terminar o trabalho, os colegas de Rodolfo gostaram tanto do seu pai que continuaram fazendo perguntas a ele. De repente, alguém fez uma pergunta fatal.
— Por que o senhor está numa cadeira de rodas? Como surgiram essas cicatrizes?
Rodolfo ficou vermelho, desejou esconder-se debaixo do sofá. Guilherme e sua esposa guardavam um segredo a esse respeito. Sabiam que um dia teriam de contar a verdade para Rodolfo. Esperaram que ele crescesse. Ultimamente os pais comentavam que seu filho já podia saber o segredo, mas não decidiram o momento.
Diante da pergunta feita por um dos alunos, os pais de Rodolfo se entreolharam. A mãe movimentou a cabeça e fez um sinal para o senhor Guilherme, estimulando-o a contar um dos mais importantes capítulos da sua história.
Com a voz embargada de emoção, o pai começou a contar uma intrigante história:
Meu filho, quando você tinha dez meses de idade, fomos passear num hotel-fazenda. O hotel era lindo, todo feito de madeira. Eu e sua mãe fomos fazer uma longa caminhada e deixamos uma babá cuidando de você. De repente, vimos ao longe labaredas de fogo na direção do hotel.
Após uma pausa, o senhor Guilherme continuou:
Apressadamente, fomos ao local e vimos o hotel em chamas. O fogo havia-se alastrado rapidamente. Procuramos você e não o achamos. Ao ver a babá sozinha, entramos em pânico. Ela o havia abandonado para ir à piscina e teve medo de entrar no hotel para resgatá-lo. O tumulto era grande. As estruturas ameaçavam desabar.
Rodolfo estava atônito. Parecia estar vendo a cena.
Desesperado, tentei entrar no hotel. Algumas pessoas me seguraram dizendo que era loucura, pediram-me para esperar os bombeiros que em breve chegariam. — E fitando, Rodolfo, seu pai acrescentou: — Sua vida era mais importante que a minha. Poderia morrer, mas lutaria por você.
O filho não suportou. Começou a chorar diante dessa dramática história. Nesse momento, uma colega o abraçou. O senhor Guilherme continuou:
— O calor era insuportável. Comecei a tossir muito. Em meio à fumaça e ao fogo eu felizmente o alcancei. Você chorava inconsolado. Eu o abracei, o protegi e bati em retirada. Quando estava para sair do hotel, tropecei num objeto no meio do caminho. Os bombeiros, que haviam chegado, o resgataram, mas, antes que me socorressem, uma viga central desabou sobre minhas costas, fraturando minha coluna. Com a queda, meu rosto tocou em brasas vivas e se queimou.
O senhor Guilherme parou a narrativa para enxugar suas lágrimas. Em soluços, ele disse com sensibilidade inigualável:
Eu sei que as pessoas se espantam com minha face. Mas as cicatrizes que abalam as pessoas é o sinal do amor intenso que tenho por você.
Rodolfo, que havia derramado algumas lágrimas, começou a chorar em voz alta. Se antes sentia vergonha do rosto deformado do seu pai, agora estava sentindo vergonha do seu egoísmo. Em prantos, perguntou:
— Por que vocês não me contaram essa história antes?
— Eu e sua mãe resolvemos não lhe contar a verdadeira história para que você nunca achasse que por sua causa eu sou um paralítico e deformado. Queríamos que você vivesse a vida intensamente e sem traumas. Tinha medo de que você não voasse alto, por ter pena de mim. Não queria que sua história fosse amarrada nas minhas limitações e em meus sofrimentos. Se eu errei, perdoe-me.
Rodolfo recordou de todas as vezes que tentava esconder seu pai dos seus amigos. Ele conhecia suas cicatrizes, mas não o conhecia por dentro. Entendeu que foi injusto e superficial. Profundamente arrependido, saiu da condição de um filho comum para ser um filho brilhante. Olhou nos olhos do seu pai e, como se visse o cerne do seu coração psíquico, expressou:
— Papai, eu é que peço perdão. Eu não o conhecia, mas agora meus olhos o vêem. Eu tinha vergonha de você, mas agora vejo que por detrás dessas cicatrizes há um herói que me amou intensamente e lutou por mim com todas as suas forças — falou Rodolfo, num profundo estado de imersão emocional.
Os seus colegas também não contiveram a comoção. Olharam para suas vidas e, num momento de reflexão, descobriram que conheciam pouco os seus próprios pais.
Em seguida, o jovem Rodolfo levantou-se e abraçou seu pai como nunca o fizera. Raramente um abraço foi tão comovente. Depois desse gesto, fez outro gesto que seu pai jamais imaginou que fizesse: beijou as suas cicatrizes.
O pai sabia que o filho o desprezava, mas tinha esperança de que um dia ele retornaria para seus braços. As imperfeições da face do seu pai, que lhe causavam aversão, tornaram-se a fonte mais excelente de orgulho. Desse modo, tornaram-se grandes amigos, escreveram uma nova história.


Estranhos que moram na mesma casa

Após contar essa história, o professor perguntou:
— Vocês conhecem o que está por detrás dos comportamentos de seus pais ou suas mães? Conhecem as noites de insônia que eles tiveram por vocês? Conhecem os sofrimentos e as batalhas que eles enfrentaram por causa de vocês? Muitos filhos só entenderão que deveriam ter conhecido, amado e curtido mais seus pais, no dia em que eles fecharem os olhos para sempre.
— Eu perdi tempo — teve a coragem de dizer Romanov. E acrescentou: — Eu era um especialista em apontar falhas do meu pai e da minha mãe. Até que entendi essa frase que vou escrever na lousa:
Bons filhos conhecem o prefácio da história dos seus pais. Filhos brilhantes vão muito mais longe, conhecem os capítulos mais importantes das suas vidas.

E completou: —Os jovens que trabalham essa característica., em sua personalidade desenvolvem a arte de ouvir, a arte1 de dialogar, a capacidade de se colocar no lugar dos outros, de superar conflitos e de desenvolver relações saudáveis e felizes.
Os alunos, entendendo o que seu mestre lhes estava querendo dizer, compreenderam que bons filhos conhecem o comportamento visível dos seus pais, filhos brilhantes conhecem suas lutas interiores, suas dificuldades, suas aventuras. Mas olharam para sua história e perceberam que não conheciam seus pais.
O próprio Romanov passou por essa situação. Seu pai era rígido, fechado, intolerante e superocupado. Vivia para o trabalho e não trabalhava para viver. Não tinha tempo para brincar e praticar esportes com ele. Punia-o por qualquer erro. Tornou-se um mestre em karatê para poder enfrentá-lo.
Um dia, resolveu investigar por que seu pai era tão rígido e calado. Descobriu coisas inimagináveis. Quando jovem, viveu o drama da Segunda Grande Guerra Mundial. Desvendou que seu pai passou fome, viu amigos sangrando e sofrendo nos campos de batalha.
Compreendeu, assim, que "ninguém pode dar aquilo que não tem". Não era tolerante, porque fora criado num ambiente em que havia medo, miséria, insegurança. Quando entendeu o sofrimento que seu pai viveu na juventude, ele o perdoou.
O ilustre professor comentou que filhos brilhantes falham, erram, mas, apesar dos seus erros, são como garimpeiros que procuram ouro no subsolo da história de quem amam. Finalizou essa intrigante aula com estas palavras:
— Enxerguem o que está por detrás das cicatrizes dos seus pais, das suas manias, irritabilidade, impaciência. Cheguem em suas casas e perguntem pelo menos três coisas a eles: 1a) quais são seus sonhos mais importantes; 2a) quais foram os dias mais difíceis de suas vidas; 3a) quais foram os momentos mais alegres de suas histórias.
Na Escola dos Pesadelos os alunos começaram a compreender que a vida é um grande livro, mas pouco ensina para quem não sabe ler...



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